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9 de jun. de 2015

Resumo: Palavra e ficcionalização: Um caminho para o ensino da linguagem oral. SCHNEUWLY, Bernard. In “Gêneros Orais e escritos na escola”.


Resumo: SCHNEUWLY,  Bernard.  Palavra  e  ficcionalização:  Um  caminho  para  o ensino   da   linguagem   oral.   In   “Gêneros   Orais   e   escritos   na   escola”. Campinas(SP): Mercado de Letras; 2004.

Maria Angélica Cardoso

Pedagoga pela UFMS, especialista em Formação Docente pela UNIDERP, mestre em Educação  pela UFMS,  doutoranda  em  Filosofia  e  História  da  Educação  pela UNICAMP;  membro  integrante  do Grupo  de  Estudos  e  Pesquisas  HISTEDBR. 
cardosoangelica@terra.com.br

A tese defendida por Schneuwly é de que o ensino do oral na escola, em língua materna, pode se dar segundo um caminho que implica a construção de uma relação nova com a linguagem. Nesse sentido, a linguagem se insere num enfoque  mais  geral,  conforme  resume  Vygotsky:  “o  aluno  tem  acesso  a  um 
nível    superior    da    linguagem,    reorganizando,    por    isso    mesmo,    seu funcionamento  psíquico superior”.  Desenvolver  essa  linha  de  pensamento passa pelas seguintes questões: as representações habituais do oral e de seu ensino; a concepção de oralidade; as finalidades do ensino da língua materna; uma nova   concepção   de   desenvolvimento;   e   uma   visão   dialética   do desenvolvimento da linguagem.

Algumas concepções usuais sobre o oral e seu ensino

A  partir  de  entrevistas  com  professores-estudantes  de  Ciências  da Educação sobre a concepção do oral, o autor organizou as respostas em três grupos: a) o oral como materialidade; b) o oral como espontaneidade; c) o oral como  norma.  A  análise  destas  entrevistas  revelou  o  que  é  o  oral  para  os 
professores. Conforme Schneuwly, há uma complexa sedimentação da história do ensino do francês, apontando para uma visão de língua como norma, para a dependência  do  oral  em  relação  à  norma escrita,  mas  também  é  visto  como lugar  privilegiado  da  espontaneidade  e  da  liberação.  Poder-se-ia dizer  que  o oral é, por um lado, aquele em que o aluno se exprime espontaneamente, no qual  não  existe escrita,  por  outro  lado,  o  oral  cotidiano  através  do  qual  se comunicam  professores  e  alunos.  Para o  autor,  nem  um  nem  outro  parece suscetíveis de se tornarem objetos de ensino: o oral puro escapa de qualquer intervenção sistemática; aprende-se naturalmente, na própria situação. O oral que se aprende é o oral da escrita.

Abordagens do ensino que decorrem da concepção usual de oral

Dada a idealização da escrita como forma perfeita da língua, a fala só pode  ser  concebida  de  duas formas: seja como tendente necessariamente à forma ideal, fundindo oral e escrita; seja como fundamentalmente diferente da escrita em sua forma e sua função. Nos dois casos, o oral é concebido como um  todo  homogêneo  que  se  confunde  com  a  escrita  ou  se  opõem  a  ela. Vejamos algumas dessas abordagens:

A  primeira,  o  desenvolvimento  do  francês  oral  elevado  propõe-se  a melhorar globalmente a linguagem dos alunos, levando-os a um falar elevado. O conteúdo linguístico dessa abordagem comporta “um conjunto de variantes elevadas, de ordem fonológica e morfológica”. Esse procedimento arrisca-se a levar a um movimento “supernormalizante”.

A segunda abordagem enfoca a expressão oral como uma oportunidade de   expressão   de   si.   Essa   abordagem,   além   de   não   definir   objetivos pedagógicos  e  didáticos,  apresenta  dois  outros  aspectos  problemáticos:  a dimensão comunicativa da expressão oral e a inclusão expressa de conteúdos 
que  são  do  domínio  da  esfera  estritamente  privada,  introduzindo  assim  uma confusão quanto ao papel da escola.

Partir  das  finalidades  do  ensino  de  língua  materna:  qual  concepção  do oral?

Considerando que aprender uma língua é aprender a comunicar, o autor traça a finalidade do ensino da língua a partir dos seguintes princípios: levar os alunos a conhecer e dominar sua língua; desenvolver, nos alunos, uma relação consciente    e    voluntária    com    seu    próprio    comportamento    linguístico, oferecendo-lhes  instrumentos  para  melhorar  suas  capacidades  de  escrever  e de falar; construir, com eles, uma representação das atividades de escrita e de fala,  em  situações  complexas,  como  produto  de um  trabalho  de  lenta elaboração.

Isso implica uma concepção mais rica e complexa do oral e uma relação mais dialética entre oral e escrita. Não existe o oral, mas os orais, em múltiplas formas, que entram em relação com os escritos, de maneiras muito diversas: exposição oral, teatro, leitura, debates, conversação cotidiana. Existem práticas de  linguagem  muito  diferenciadas,  que  se  dão  pelo  uso  da  palavra,  mas também por meio da escrita, e são essas práticas que podem se tornar objetos de um trabalho escolar.

De  modo  geral,  as  capacidades  que operam  no  comportamento verbal não  podem  ser  respondidas, pois,  não  há  capacidades  orais  independentes das  situações  e  das  condições  de  comunicação  em que  se  atualizam.  É preciso, portanto, escolher uma entrada mais precisa, um ponto de vista que, há um só tempo, torne possíveis o enfoque e a descrição de objetos e permita a intervenção didática.

A entrada que o autor privilegiou foi a dos gêneros textuais, pois são, a um  só  tempo,  complexos  e heterogêneos  produtos  sócio-históricos,  definidos empiricamente,  além  de  serem  instrumentos semióticos  para  a  ação  de linguagem.

Definir  os  gêneros  textuais  consiste  em  encará-los  como  instrumentos culturalmente    forjados.   Psicologicamente,    um    instrumento    tem    duas dimensões:  por  um  lado,  ele  é  um  artefato  material ou  simbólico  que materializa a finalidade a que serve, e, por outro, constitui um esquema de uso que contém a possibilidade de agir numa situação.

Conforme  Bakhtin,  podem-se  definir  três  dimensões  que  formam  a identidade de um gênero: o que é dizível por meio dele (conteúdo temático), a forma   de   organização   do   dito   (a   estrutura   composicional)   e   os   meios linguísticos que operam para dizê-lo (o estilo).

O gênero desempenha o papel de interface entre os interlocutores: ele é um  instrumento  de  comunicação, à  medida  que  define,  para  o  enunciador,  o que  é  dizível  e  a  forma  de  dizê-lo  e,  para  o destinatário,  o  “horizonte  de expectativas”.

Sendo assim, o autor define o que constitui o objeto do desenvolvimento de linguagem: é saber falar, não importa em que língua, é dominar os gêneros que nela emergiram historicamente, dos mais simples aos mais complexos.

Outros   pontos   de   vista   poderiam   ter   sido   adotados:   operações comunicativas,  atos  de  fala, etnometodologias,  tipos  de  discurso.  De  certa maneira,  eles  se  implicam  mutuamente:  uma etnometodologia,  por  exemplo, está  constituída  por  atos  de  fala,  eles  próprios  fundados  por operações comunicativa;   ao  mesmo  tempo,   as   etnometodologias   inscrevem-se   nos 
gêneros textuais.

Não  há  nenhuma  dimensão  de  linguagem  que  permitiria  definir  de maneira  uniforme  o  oral  em  relação  à  escrita.  O  oral  não  existe;  existem  os orais, atividades de linguagem realizadas oralmente, gêneros que se praticam essencialmente na oralidade. Os meios linguísticos diferem fundamentalmente; as estruturas sintáticas e textuais são diferentes; a utilização da voz também se faz  de  maneira  diversa;  e  igualmente  a  relação  com  a  escrita  é,  em  cada situação, específica. Trabalhar os orais pode dar acesso ao aluno a uma gama de atividades de linguagem e, assim, desenvolver capacidades de linguagem diversas.

Questões de desenvolvimento

Nos  anos  de  1970,  no  Quebec  e  na  Bélgica,  experimentou-se  uma abordagem que tentou desenvolver as capacidades orais, criando situações de comunicação   diversificadas   e   variando   sistematicamente   os   parâmetros contextuais,  instaurando,  assim,  restrições  às  quais  os  alunos  deveriam adaptar-se,  desenvolvendo  novas  estratégias  comunicativas.  As  situações propostas exigem a operação de estratégias, mas sem que seja proposto um trabalho sistemático, visando instrumentalizar os alunos para o domínio dessas situações.   Essa   abordagem   comunicativa   estrita   sustenta   que   situações comunicativas   reais   e   variadas   são   suficientes   para   desenvolver   as habilidades.

Outra  forma  de  abordar  a  discussão  sobre  o  desenvolvimento  é estendendo    para    a    reflexão   sobre a aquisição,  desenvolvimento    e aprendizagem,  em  particular,  sobre  o  que  é  o  objeto  da aquisição,  do desenvolvimento,  da  aprendizagem:  trata-se  unicamente  de  automatismos  da linguagem? Ou  também  da  relação  que  estabelecemos  com  nossa  língua  e com a linguagem em geral?

Referindo-se  a  Vygotsky  que  coloca  a  educação  e,  particularmente,  o ensino  como  um desenvolvimento  artificial  do  ser  humano,  o  autor  considera que a forma escolar de intervenção educativa é uma condição necessária para o  aparecimento  de  certas  formas  cognitivas  complexas, ligadas  a  técnicas culturais  particularmente  elaboradas  e  cujo  acesso  implica  lugares  sociais particulares  de  aprendizagem.  Esta  tese  considera  que  o  desenvolvimento  é restringido por seu resultado; já é pré-programado, não pelo interior, mas pelo exterior. Contudo, essa forma não define inteiramente o desenvolvimento, mas o  coloca  sob  uma  tensão  que  não  pode  ser  definida  a  partir  do próprio desenvolvimento  –  automovimento  –  mas  por  uma  interação  entre  esse desenvolvimento e a forma à qual ele se dirige.

Uma outra maneira de pensar o desenvolvimento parte da premissa de que toda a capacidade humana é construída pela apropriação de instrumentos semióticos. O sujeito que age sobre o mundo com a ajuda de instrumentos que são ferramentas  psicológicas  ou  semióticas constrói  novas funções  psíquicas concebidas  como  transformações  dos  próprios  processos  psíquicos  pela integração  desses  novos instrumentos.  Por  essa  concepção,  o  contexto,  a intervenção educativa e o ensino não podem ser meramente concebidos como “alimentação”.   A   intervenção   educativa   dá   uma   forma   particular   ao 
desenvolvimento porque coloca à disposição, em termos de instrumentalização do  desenvolvimento  da criança,  instrumentos  semióticos  que  lhe  permitem construir   e   reconstruir   suas   próprias   funções   psíquicas.   Esse   tipo   de abordagem   é   considerado   como   interacionismo   social   e   instrumental (semiótico).

Para  Schneuwly  é  certo  que  aprendizagem  em  meio  escolar  participa grandemente da apropriação de uma cultura de comunicação. Assim, o objeto do desenvolvimento só pode ser múltiplo, heterogêneo e, sobretudo, complexo.

O  desenvolvimento  e  o  ensino  da  linguagem  oral:  a  necessidade  de ficcionalização

A  tradição  escolar  é  pouco  desenvolvida  no  ensino  do  oral  e  os conhecimentos  sobre  o  desenvolvimento  da  linguagem  oral  na  idade  escolar são muito limitados.

Vygotsky  descreveu  o  papel  da  escola  como  sendo  o  de  elevar  os alunos do diálogo “natural” ao monólogo “artificial”; trata-se de levar os alunos das  formas  de  produção  oral  auto-reguladas,  cotidianas e  imediatas  a  outras mais definidas do exterior, mais formais e mediatas. É precisamente a escola que produz  e  pressupõe,  para  seu  funcionamento,  modos  de  comunicação mais  fortemente  formalizados e convencionalizados,  o  que  não  exclui  a continuação paralela dos outros modos cotidianos.

As  formas  cotidianas  de  produção  oral  funcionam,  principalmente,  na forma  de  reação  imediata  à palavra  dos  outros  interlocutores  presentes; portanto, a gestão da palavra é coletiva; a palavra do outro constitui o ponto de partida da palavra própria. Ainda que inscrita numa situação de imediatez, pelo fato  de que  a  produção  oral  se  dá  em  presença  de  outros,  as  formas institucionais do oral implicam outros modos de gestão que são essencialmente individuais.  Essas  palavras  podem  ser  integradas  de  uma forma  enunciativa explícita  no  discurso  próprio;  a  estrutura  do  discurso  é  o  resultado  de  uma intensa ação  recíproca  entre  gestão  local  e  gestão  mais  global  do  discurso. Isso pressupõe o domínio de instrumentos semióticos complexos, que podem ser aqueles das formas cotidianas, mas utilizados de outra maneira, ou podem ser específicos, ligados às formas institucionais de comunicação oral.

Para  o  autor,  toda  atividade  de  linguagem  complexa  supõe  uma ficcionalização,  uma  representação puramente  interna,  cognitiva,  da  situação de   interação   social.   A   modelização   dessa   representação isola quatro parâmetros da produção: enunciador, destinatário, finalidade ou objetivo e lugar social.  A construção dessa representação  é  uma  atividade  produtiva  cujos efeitos  refletem-se  na  produção, manifestados  pelo tratamento  inerente  à língua.  A  ficcionalização  revela-se,  então,  como  uma geradora da  “forma  do conteúdo” do texto: ela é o motor da construção da base tipo de orientação da produção, colocando certas restrições sobre a escolha do gênero discursivo.

As formas institucionais implicam sempre uma parte de ficcionalização, à medida que os parâmetros contextuais não estão dados pela situação imediata, mas  pré-definidos  institucionalmente  e  materializadas no  próprio  gênero.  O enunciador,  o  destinatário,  lugar  social  são  parcialmente  instâncias  físicas  e sociais da produção e da recepção imediatas e devem ser ficcionalizados para aparecer  no  texto produzido,  em  forma  de  traços  diversos.  Essa  palavra fortemente  definida  e  regulada  do  exterior permite  e  pede  uma  intervenção didática, portanto, é sobre ela que deve incidir prioritariamente o ensino do oral. Nesse  sentido,  o  trabalho  sobre  a  ficcionalização  parece  constituir  uma dimensão essencial do trabalho sobre o oral.

Concluindo,   o   autor   afirma   que   há   ficcionalização   nos   gêneros complexos a serem trabalhados em sala de aula. A particularidade do oral em relação  à  escrita  reside  no fato  de  que  essa  ficcionalização deve  se  articular com uma representação do aqui e agora, gerenciada simultaneamente, graças aos  meios de  linguagem  que  são  o  gesto,  a  mímica,  a  corporalidade,  a prosódia.  Palavra  e  ficcionalização constituem  os  dois  vetores  a  partir  dos quais  se  constroem  as  novas  capacidades  de  linguagem oral.  O  fato  de  que essa  construção  não  pode  se  dar  sem  uma  intervenção  da  escrita  mostra  o poder desse instrumento e prova que é necessário que se forje uma concepção dialética dos diferentes aspectos do ensino da língua materna.

Disponível em: <https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0CCUQFjAB&url=http%3A%2F%2Fwww.apeoesp.org.br%2Fd%2Fsistema%2Fpublicacoes%2F158%2Farquivo%2Frevista-peb1.pdf&ei=7Oh2VfX8N8aHsQT9loLoBA&usg=AFQjCNFha9kyn889HArUpAlTYYdOvUFSYw&sig2=RkH8c9z4_5xPcepInYaGXA&bvm=bv.95039771,d.cWc> Acesso em: 9 Jun 2015.

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